Guilherme de Oliveira Barros, Autor em Mazzotini https://mazzotiniadvogados.com.br/author/guilhermedeoliveiradebarros/ Advogados Associados Wed, 05 Feb 2025 17:59:21 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.5.5 https://mazzotiniadvogados.com.br/wp-content/uploads/2023/11/ISOTIPO-1.svg Guilherme de Oliveira Barros, Autor em Mazzotini https://mazzotiniadvogados.com.br/author/guilhermedeoliveiradebarros/ 32 32 Abuso de direito e prescrição https://mazzotiniadvogados.com.br/abuso-de-direito-e-prescricao/ Thu, 21 Nov 2024 12:01:16 +0000 https://mazzotiniadvogados.com.br/?p=11873 “Como você sabe que um advogado está mentindo? Seus lábios estão se movendo.” A piada, contada pelo narrador e protagonista de “O Homem que Fazia Chover” (1997), adaptado da obra de John Grisham e dirigido pelo lendário Francis Ford Coppola, retrata a imagem que a sociedade tem daqueles que a CF/88 declarou serem indispensáveis “à […]

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“Como você sabe que um advogado está mentindo? Seus lábios estão se movendo.” A piada, contada pelo narrador e protagonista de “O Homem que Fazia Chover” (1997), adaptado da obra de John Grisham e dirigido pelo lendário Francis Ford Coppola, retrata a imagem que a sociedade tem daqueles que a CF/88 declarou serem indispensáveis “à administração da justiça”.  

Esta fama, no mais das vezes não merecida, aponta uma incongruência inerente ao sistema jurídico que tem como pilar central a boa-fé objetiva, ou seja, a presunção de que todos os que atuam em juízo o fazem com base na verdade.

O atual CPC, em seus arts. 5º e 6º, sedimenta esta premissa ao impor àquele “que de qualquer forma participa do processo” o dever de “comportar-se de acordo com a boa-fé”, devendo todos “cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. 

O professor Paulo Cunha, citado pelo jurista lusitano António Menezes Cordeiro1, oferecia a seguinte ponderação: “Os litigantes têm de ser honestos, mas não têm de ser ingénuos. São homens, não são heróis. Postular a boa fé em termos absolutos seria excessivo. Seria impossível. (…) Não. A exigência da boa fé processual não pode ser ilimitada, indefinida.”

O que se indagará, nesta breve exposição, são os limites e consequências da atuação daqueles advogados que Piero Calamandrei chamou de mestres da esperteza.

Em particular, e inspirada pela recente decisão do Tema 1.200 do STJ3, os efeitos da prescrição causada por estratagemas empregados pelo devedor para inviabilizar o reconhecimento ou satisfação de determinado direito.

Nesta oportunidade, o Tribunal da Cidadania entendeu que a “imprescritibilidade da pretensão atinente ao reconhecimento do estado de filiação”, tratando-se de ação “ação declaratória (pura), na qual se pretende, tão somente a obtenção de uma certeza jurídica”, não “poderia conferir ao pretenso filho/herdeiro a prerrogativa de escolher, ao seu exclusivo alvedrio, o momento em que postularia, em juízo, a pretensão da petição de herança, a redundar, indevidamente (considerada a sua natureza ressarcitória), também na imprescritibilidade desta, o que (entendeu a Corte) não se pode conceber.” 

Admitida e compreendida esta premissa, alcançamos a implicação lógica que o exercício da pretensão “ressarcitória” prescinde da certeza, pela parte interessada, da própria existência do direito reclamado.

Mantendo o sigilo inerente ao processo que corre sob segredo de justiça, encontramos no plano material hipótese de caso concreto que desafia a tese firmada pelo acréscimo do elemento dolo.

Em apertada síntese, falamos de uma parte vitimada pela engenhosa fraude processual de seu genitor que, no curso de ação de reconhecimento de paternidade, conseguiu fazer com que o laboratório responsável pelo exame de DNA trocasse as amostras colhidas.

Juntado aos autos laudo negativo, levando à improcedência da ação, com sentença transitada em julgado.

Anos após o falecimento daquele requerido, sobreveio a denúncia de que a prova havia sido fraudada. Munida deste novo elemento de fato, a parte ajuizou nova ação declaratória que incluiu o único filho até então reconhecido como tal pelo de cujus, com o pedido de colheita de nova amostra de material genético através do qual o elo de parentesco poderia ser comprovado.

Esta ação, autuada antes do decurso do prazo prescricional da petição de herança, como definido no julgamento repetitivo, encontrou longa resistência do meio-irmão requerido e das instâncias ordinárias, apegadas que estavam à existência de coisa julgada que infirmaria a pretensão autoral.

A solução, com o reconhecimento da paternidade, se deu mais de doze anos após a propositura da demanda declaratória, com múltiplas decisões do STJ cuja ordem de produção da prova pretendida foi, reiteradamente, desrespeitada pela Justiça local. 

Caberá, certamente, àquela mesma Corte Superior solucionar a seguinte questão: se o Tema 1.200, ao privilegiar a noção puramente objetiva da actio nata, poderá servir de guarida àquele beneficiado pela fraude processual praticada por seu pai e, chamado a juízo, ofereceu combativa resistência à produção da única prova capaz de corrigir sanar a controvérsia. 

Em exauriente estudo do instituto da prescrição, o professor Humberto Theodoro Júnior aponta como um de seus requisitos fundamentais a inércia do titular do direito: “A inércia do titular da pretensão, que conduz à prescrição, se dá pela não dedução da pretensão em juízo, ou seja, pela não propositura da ação necessária a compelir o inadimplente a realizar a prestação devida, bem como pela não tomada de nenhuma outra providência prevista em lei que seja capaz de impedir ou interromper a marcha do prazo extintivo.” 

Esta leitura do instituto é corroborada pelo mesmo STJ em diversas oportunidades, destacando-se acórdão publicado um dia antes do repetitivo em tela, no qual a Corte consignou que a vinculação do prazo prescricional à omissão do credor “reverencia antigo entendimento jurisprudencial, no sentido de que o titular de uma pretensão somente deve ser penalizado com a sua perda se e quando caracterizada a sua inércia no exercício daquela, não podendo ser prejudicado, portanto, por eventual extrapolação de prazo legal de exercício da pretensão para a qual não tenha ele, o titular, dado causa”.

Retornando ao caso que ensejou o presente estudo, há evidente incongruência sistêmica entre a noção de que o prazo prescricional passa a fluir do início da sucessão, ainda que o herdeiro não tenha ciência de seu vínculo sanguíneo com o autor da herança, e aquela de que o prejuízo do detentor de um direito só pode advir de sua própria inércia, particularmente quando a suposta omissão no exercício decorre de circunstâncias fabricadas pela parte a quem a extinção aproveita.

Há, na obra de Humberto Theodoro Júnior, solução que reputamos de invulgar elegância e de alcance maior do que sua sucinta exposição faz presumir:

“Se o credor for impedido por dolo (astúcia do devedor, para não permitir que a existência da obrigação, ou seu vencimento, fosse conhecido do interessado), ou por coação física ou moral (sequestro, cárcere privado, ameaças graves etc.), de ajuizar a ação antes do término da prescrição, não é preciso invocar a teoria da força maior ou do motivo justo para justificar o exercício do direito fora do prazo legal.

É que o dolo e a coação, além de provocarem vício de consentimento, constituem ato ilícito, que obriga o agente a indenizar todo prejuízo causado à vítima. A prescrição seria justamente o prejuízo gerado pelo ato delituoso, cuja reparação caberia ao devedor realizar. Logo, a pretensão morta pela prescrição renasceria por fora do delito.”

Aqui se encontra o elo entre a premissa inicial acerca da boa-fé que orienta nosso ordenamento jurídico8 e os desdobramentos decorrentes da astúcia da parte que impõe empecilhos processuais, por vezes ostentando o verniz da ampla defesa, capazes de resultar no perecimento da pretensão de seu adversário.

Se a colaboração é um dever que atinge todos aqueles envolvidos no processo9, a adoção de estratégias que posterguem a realização de prova imprescindível ao reconhecimento do direito alheio para além do esgotamento do prazo prescricional deve ser considerada ilícita, na forma do art. 187 do CC, por exceder “manifestamente os limites impostos” pelo fim econômico ou social da ampla defesa.

Supera-se, assim, a omissão legislativa a respeito do dolo enquanto causa de suspensiva ou interruptiva da prescrição, garantindo àquele prejudicado a oportunidade de ver reparado o dano correspondente à extinção de sua pretensão original através de ação indenizatória. 

Estabelecido este raciocínio central, podemos testar sua integridade lógica através de sua aplicação a outras hipóteses nas quais o exercício do direito pelo devedor alcance o patamar de ilícito civil.

Propõe-se que este seja o caso do credor que abandona a execução de seu crédito após anos de tentativas frustradas de recebimento, operando-se a extinção do processo pela prescrição intercorrente, descobrir, a posteriori, engenhosa arquitetura de blindagem e desvio patrimoniais.

Sendo, como sustenta Câmara Leal, irracional “admitir-se que a prescrição comece a correr sem que o titular do direito violado tenha ciência da violação” , em um sistema jurídico que tem a boa-fé como princípio central, é inconcebível que a astúcia do devedor que, lançando mão de subterfúgios compreendidos como abusivos, seja premiada com sua absoluta exoneração.

É o caso do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, previstas no art. 50 do CC, que autorizam a desconsideração da personalidade jurídica do responsável pela obrigação, para alcançar o patrimônio de seus sócios ou de outras empresas coligadas.

Assim como no exemplo da petição de herança, é da ciência a posteriori do ato ilícito que surge a pretensão de ver reparado o dano causado pelo antijurídico exercício de um direito formalmente legítimo.

Sopesados estes elementos, a conclusão que se propõe é que a vitória obtida pelo emprego de “engenhosos estratagemas” pelo astuto advogado, que vê na boa-fé senão um conceito romântico, e por isso démodé, será, invariavelmente, pírrica: idêntica obrigação à inviabilizada penderá como a Espada de Dâmocles sobre seu representado, agora “renascida” como pretensão indenizatória equivalente ao prejuízo suportado pelo credor.


1 CUNHA, Paulo A. V., Simulação processual e anulação do caso julgado, 1935, p. 22, in, CORDEIRO, António Menezes, Litigância de Má Fé, Abuso do Direito de Acção e Culpa, p.

2 CALAMANDREI, Piero. P. 5.

3 No qual restou firmada a tese de que “[o] prazo prescricional para propor ação de petição de herança conta-se da abertura da sucessão, cuja fluência não é impedida, suspensa ou interrompida pelo ajuizamento de ação de reconhecimento de filiação, independentemente do seu trânsito em julgado”, com acórdão publicado em 28/05/2024.

4 THEODORO JÚNIOR, Humberto. P. 27.

5 REsp n. 2.045.193/DF, relator Ministro Paulo Sérgio Domingues, Primeira Seção, julgado em 22/5/2024, DJe de 27/5/2024.

6 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Op. cit., p. 121.

7 Nas palavras do insubstituível professor Miguel Reale, “a boa-fé não constitui um imperativo ético abstrato, mas sim uma norma que condiciona e legitima toda a experiência jurídica, desde a interpretação dos mandamentos legais e das cláusulas contratuais até as suas últimas conseqüências”, derivando daí “a necessidade de ser ela analisada como conditio sine qua non da realização da justiça ao longo da aplicação dos dispositivos emanados das fontes do direito, legislativa, consuetudinária, jurisdicional e negocial.”, in A Boa Fé no Código Civil, artigo de 16/08/2003, disponível em < https://www.miguelreale.com.br/artigos/boafe.htm>.

8 MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Prova e Convicção, p. 175.

9 LEAL, Antonio Luiz da Cãmara. Da Prescrição e da Decadência, 4ª ed., Rio de Janeiro : Forense, 1982, p. 37.

Autor: Doutor Guilherme Barros

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O Navio de Teseu e a Autonomia Mitigada da Holding Patrimonial https://mazzotiniadvogados.com.br/navio-de-teseu-holding-patrimonial/ Mon, 20 May 2024 13:59:56 +0000 https://mazzotiniadvogados.com.br/?p=11725 A ideia da autonomia patrimonial atrelada à personalidade jurídica de sociedades empresarias está de tal maneira enraizada no consciente coletivo dos operadores do direito que o teor do art. 49-A, parágrafo único, incluído no Código Civil por força da Lei n. 13.874/2019, foi descrito como “óbvio” e “mais ‘ideológico’ do que efetivo ou com concreta relevância prática” pelo emérito professor Flávio Tartuce.

Sem a pretensão de refutar a conclusão do ilustre mestre, especialmente quanto ao equívoco da norma em relação às fundações e associações, o que propomos é uma reflexão acerca da existência de uma “autonomia mitigada” para o caso específico de holdings puramente patrimoniais.

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A ideia da autonomia patrimonial atrelada à personalidade jurídica de sociedades empresarias está de tal maneira enraizada no consciente coletivo dos operadores do direito que o teor do art. 49-A, parágrafo único, incluído no Código Civil por força da Lei n. 13.874/2019, foi descrito como “óbvio” e “mais ‘ideológico’ do que efetivo ou com concreta relevância prática” pelo emérito professor Flávio Tartuce.

Sem a pretensão de refutar a conclusão do ilustre mestre, especialmente quanto ao equívoco da norma em relação às fundações e associações, o que propomos é uma reflexão acerca da existência de uma “autonomia mitigada” para o caso específico de holdings puramente patrimoniais.

Para tanto, tomaremos como ponto de partida o paradoxo do Navio de Teseu.

A premissa do experimento mental é a seguinte: Teseu, o herói grego, fez sua famosa viagem ao Labirinto construído por Dédalo a mando do rei Minos em Creta num navio de trinta remos. Assumamos que no trajeto, uma das tábuas que o compunham foi trocada por outra prancha robusta e perfeitamente ajustada à embarcação. 

Se, no curso da travessia, a operação se repetiu até que nenhuma das peças originais permanecesse quando atracou vitorioso em Atenas, trazendo consigo os jovens resgatados, seria aquele o mesmo navio que deixara a costa no início da heroica jornada?

Thomas Hobbes examina e amplia o escopo do paradoxo, imaginando que as tábuas descartadas teriam sido reunidas e remontadas na mesma ordem em que retiradas, até o reestabelecimento do trirreme, lado a lado com aquele que chegou ao porto ateniense.

Na segunda hipótese, a questão proposta por Hobbes é de qual seria o verdadeiro Navio de Teseu. 

Sua sugestão é de que “se nenhuma parte da matéria for a mesma, então é numericamente outro navio, se parte da matéria permanecer e parte for mudada, então o navio será parcialmente o mesmo, e parcialmente não o mesmo”

Para os fins deste artigo, tanto a questão central quanto as implicações são muito mais simples: se uma holding que não exerce atividade empresarial, possuindo patrimônio exclusivamente “não operacional” transferir parte seus bens para uma segunda holding, enquanto constrita a participação do sócio, permanecem sendo parte daquela em relação ao crédito garantido?

Nossa conclusão é positiva, pois se são os bens e direitos reunidos sob o véu da personalidade jurídica que constituem sua essência, sua raison d’etre, então o dever de preservação de sua integralidade inerente à constrição impõe sua vinculação ao processo, ainda que, formalmente, ausente responsabilidade direta entre a pessoa jurídica e a obrigação sub judice

Vale dizer: se transferidos os bens de uma sociedade para outra enquanto constrita a participação societária do devedor, então a garantia da execução deve acompanhá-los, independente da licitude formal da operação.

Voltando-nos ao plano da ciência jurídica aplicada, encontramos na lição de Gladston e Eduarda Cotta Mamede raciocínio semelhante:

“Com efeito, os sócios de uma holding, sejam pessoas físicas ou jurídicas, já têm em seu patrimônio pessoal os títulos societários (quotas ou ações) que, enfim, correspondem a parcelas do capital social da sociedade (a holding). Esse capital social não se confunde com o patrimônio social. O patrimônio social pode elevar-se como resultado das atividades sociais, incluindo a possibilidade de incorporação de lucros. Contudo, se o patrimônio social é o resultado direto da integralização de capital, não tendo merecido incorporações, a dissolução da sociedade determinará mero reembolso dos sócios, mormente quando haja mero rateio dos títulos que compõem o acervo patrimonial da holding, afastando até a verificação de lucro na alienação dos títulos para que o rateio se faça em dinheiro. O mesmo parâmetro aplica-se à resolução da sociedade (a holding) em relação a um ou alguns sócios, bem como na redução de seu capital social, ainda que paga em dinheiro, desde que não haja acréscimo patrimonial para o sócio. Destaque-se que essa equação não se altera pelo argumento de que os títulos societários valorizaram-se; essa valorização de mercado apura-se na alienação. E no rateio dos títulos não há alienação. Os títulos serão inscritos na declaração de bens dos sócios pelo valor contábil que mantinham na holding; somente quando alienados se verificará lucro ou não, podendo haver mesmo prejuízo. O mesmo parâmetro deve ser observado quando o patrimônio da holding é constituído por bens imóveis ou móveis, e não apenas por títulos societários (quotas ou ações).”

Se, pela ausência de atividade econômica, opera-se um liame direto de correspondência entre o patrimônio da holding e do sócio, então a eficácia da tutela executiva exige que incidam sobre a pessoa jurídica as mesmas limitações aplicadas ao executado.

Em seus Comentários ao Código de Processo Civil, Pontes de Miranda pondera acerca dos efeitos da penhora enquanto instituto:

“A penhora não é penhor, nem é arresto, nem uma das medidas cautelares. O que nela há é expropriação da eficácia do poder de dispor que não há no arresto. O ato é processual e já, posto que ainda insuficientemente, executivo. Não há nulidade de negócios jurídicos relativos à venda (por exemplo) de bens penhorados. Pode haver mesmo doação. O que não é eficaz é qualquer transmissão desde logo. Se o devedor promete vender e desde logo solve a dívida, extingue-se a eficácia da penhora. As alienações dos bens penhorados, enquanto existe e é eficaz a penhora, são ineficazes, no plano do direito processual. Vale, no plano do direito material, o próprio ato de transmissão, mas a ineficácia, no plano do direito processual, tem como consequência que os atos de direito material foram ineficazes e continuam ineficazes. Mais uma vez temos de refletir a distinção, cuja clareza se deve a A. THON, desde 1878, entre direito de que se dispõe e poder de dispor de um direito. O poder de dispor foi retirado, processualmente, ao devedor, em virtude da penhora.

Conquanto a mais abalizada doutrina contemporânea desafie esta leitura, pode-se considerar com segurança a limitação ao uso e gozo da coisa penhorada, porquanto a “subtração, a supressão, a destruição, a dispersão e a deterioração da coisa penhorada constituem ilícito penal (entre nós, art. 179 do CP), não houvesse a constrição, e em princípio, ao proprietário afigurar-se-ia lícito destruir o que é seu”, como ensina o professor Araken de Assis. 

O que cumpre indagar no exemplo examinado é se essa limitação do poder de dispor ou, como prefere o laureado jurista, a consequente ineficácia perante o processo, se estende sobre decisões tomadas pela pessoa jurídica, terceira formalmente estranha à execução, que impliquem em redução objetiva do valor atribuído às quotas penhoradas quando da liquidação imposta pelo art. 861, III, do CPC. 

A resposta alcançada pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça é positiva, como se extrai do precedente abaixo:

“DIREITO CIVIL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL. FRAUDE A EXECUÇÃO. PENHORA REGISTRADA DE COTAS DE PROPRIEDADE DE SÓCIOS DE SOCIEDADE POR COTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA.  ALIENAÇÃO DE IMÓVEL DE VULTO PELA SOCIEDADE E ENTREGA DO PREÇO AOS SÓCIOS, POR ENDOSSO DE CHEQUE. ESVAZIAMENTO DO VALOR DAS COTAS. INSOLVÊNCIA. FRAUDE DE EXECUÇÃO CONFIGURADA. EMBARGOS DE TERCEIRO MOVIDOS PELA ADQUIRENTE JULGADOS IMPROCEDENTES. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
(…)
2.- A venda de bem imóvel de vulto, na pendência de penhora de cota de sociedade por cotas de responsabilidade limitada, com transferência imediata, por esta, do numerário aos sócios, mediante endosso de cheque, implica o esvaziamento do valor das cotas e, consequentemente, da penhora, devidamente registrada, que sobre elas se realizou.
(…)
4.- Recurso Especial provido, decretadas a fraude à execução e a ineficácia da alienação no tocante ao Recorrente.”

É certo que no caso apreciado pela Corte a fraude se caracterizou pela transferência direta do valor obtido pela alienação aos sócios, todavia a ratio decidendi estabelece um parâmetro interpretativo que coaduna com a tese ora proposta: 

“Não importa o valor pelo qual tenham sido avaliadas ou adjudicadas as cotas, o que é essencial é perceber que elas representavam a fração de um capital social que foi significativamente reduzido pela alienação impugnada, diminuindo-se, com isso, a própria garantia do exequente. O prejuízo emerge, portanto, da própria diminuição efetiva da garantia, da impossibilidade de se obter pela adjudicação ou excussão do bem penhorado o valor que ele originariamente representava.”

E, ainda: 

“Vale lembrar que não se está diante de uma sociedade anônima de capital aberto, em que o valor das ações decorre muito mais da imagem e dos prognósticos que essa sociedade projeta para a sociedade do que pelo seu patrimônio instalado. Nesse tipo societário seria possível admitir que o valor das ações estivesse, até certo ponto, desvinculado do valor efetivo do ativo patrimonial. 
No caso das sociedades por cotas de responsabilidade limitada, ao contrário, há relação direta entre o valor da cota e o patrimônio da sociedade, pela justa razão de que a cota social nada mais é do que a representação de uma parte do ativo dessa mesma sociedade.
Nesses termos, a redução do ativo patrimonial, resultante da alienação de bem imóvel, na sociedade de responsabilidade limitada, implica, necessariamente, a redução do valor da cota social.”

Se os bens não operacionais de uma holding patrimonial traduzem a integralidade de sua existência, admitir a alienação daqueles implica, ipso facto, no esvaziamento da própria penhora de suas quotas sociais.

Por essa razão, entendemos e sugerimos como possível resposta ao debate instaurado pela popularização deste modelo societário, com especial atenção à sua utilização como instrumento de blindagem patrimonial, que o “véu da personalidade jurídica” é mais tênue, tendo por consequência sua autonomia patrimonial mitigada para impedir atos de disposição na exata proporção das quotas sociais penhoradas.

Como no paradoxo que inaugurou este artigo, se a essência da holding criada para reunir bens de seus sócios são os próprios bens, como as tábuas que constituem a alegórica embarcação, ainda que transferidos para pessoa jurídica diversa, devem persistir como garantia do processo em que penhoradas as quotas do sócio devedor.

A alternativa, incompatível com o sistema jurídico, seria a convalidação do abuso da autonomia patrimonial como instrumento de invalidação das regras de direito processual e, por consequência, da própria autoridade do estado-juiz em fazer valer seu julgamento.

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